sábado, 4 de dezembro de 2010

Um dia não são dias.. II


Ouço um latido ensurdecedor. Os cães do vizinho não podem sentir ninguém, e o camião do lixo muito menos, já que emite aquele irritante e característico apito.
É tão cedo! Não quero sair da cama. Abro os olhos. Ninguém! Olho em volta, e mais uma vez estou completamente só. Não gosto, mas como já vai sendo habitual, não estranho. Viro-me para o lado e adormeço por mais cinco minutos, que é precisamente o tempo que leva para que o meu horrível despertador comece a tocar aquele estridente som que me parece uma orquestra de grilos a guinchar dentro da minha cabeça. Acordo.
O sol ainda não nasceu, mas já se nota alguma claridade no ar. Inspiro fundo, bem fundo, e só isso parece ser suficiente para ganhar forças e enfrentar mais um novo dia.

Do quarto à casa de banho é num ápice, porque esta é uma daquelas manhãs muito frias. Abro a torneira da água quente enquanto dispo o pijama. Já quase não vejo o meu reflexo no espelho graças à densa neblina que se acumula. È bom! Significa que a água está bem quente, como eu gosto.
De volta ao quarto, sinto alguma dificuldade em escolher o que vestir. Hoje nada parece ficar bem com o meu pneuzinho. De onde é que isto veio? Há 10 anos não estava aqui! Tento não fixar o olhar, nunca se sabe se não poderá crescer se se sentir observado. A roupa! tenho de rapidamente escolher a roupa, mas nenhuma cor me agrada, nenhum género me agrada, nenhuma combinação me agrada. Visto o normal: Preto em cima, preto em baixo, e está feito! Brincos a condizer, o mesmo fio de sempre, e perfume esse, o mesmo de sempre. Hipnotizada pela minha imagem no espelho, penso se será sempre assim... Imagino-me velhota, numa casa velhota, sozinha com 50 gatos que brincam todo o santo dia com as teias de aranha espalhadas pelos cantos. Estou sentada na minha velhota cadeira de baloiço perto da janela, a olhar lá para fora onde jovens casais se passeiam de mão dada, abraçados, apaixonados aos beijos. E eu, na minha escura solidão de décadas, acaricio a mais velhota das minha gatinhas. Desperto do transe e poucos segundos haviam passado. Apago aquela triste imagem da minha cabeça e continuo os meus afazeres.

O meu pequeno-almoço é leve, aliás como sempre: uma tijela de cereais integrais com leite magro. O pneuzinho sorri na minha direcção, mas tenho que me alimentar. Como enquanto quase choro com as desgraças que passam na televisão logo de manhã. Ainda liberto uma lágrima e borro a pintura, mas o tempo está todo controlado. Contenho-me, limpo-me e retoco-a muito rapidamente. Se demorar muito tempo, ainda me atraso para o emprego, e isso seria o fim do mundo.
Ouço nas notícias que da parte da tarde há grandes possibilidades de ocorrência de aguaceiros, que é assim que eles falam. Não podiam só dizer: “Agasalhem-se moços, que vai chover!”? Talvez não! Depois não se percebiam uns aos outros. Vou ao armário de parede buscar o meu casaco e, à saída, pego o guarda-chuva.
Já na rua, debaixo de um sol abrasador, encontro o meu vizinho: "Bom dia, vizinha! De guarda-chuva? Com este calorão?" – "Bom dia. Disseram que podia chover", respondo intrigada por vê-lo de t-shirt, descontraido e despeocupado.
 Vou para o carro, tudo corre dentro do planeado. Pelo caminho encontro um acidente do outro lado da estrada. A fila está enorme do lado de lá, cheia de curiosos sem vida própria, que parece que não têm sítio para ir, a observar os destroços, quiçá à procura de cadáveres para que o dia lhes corra melhor enquanto pensam: "Ainda bem que não sou eu ali!". Os intervinientes do acidente estão fora dos carros em claras demontrações de masculinidade, libertando largas quantidades de testosterona, tanta que até lhe sinto o odor.

Chegada ao emprego, pico o ponto e vou para o meu gabinete, enquanto aprecio todo aquele alvoroço matinal. Recebo montes de "Bons Dias", e outro tantos desejos de bom trabalho. Penso que será porque sou nova aqui. E até estou a gostar de cá estar, não fosse o facto de andar cronicamente aborrecida. Sinto a falta de algo, mas o quê?
A manhã passa rápido. Andei sempre atarefada. O almoço hoje é sandes de galinha e um néctar de pêssego. Se há coisa que me aborrece é cozinhar, especialmente só para mim.
No snack-bar, a D. Adeleide faz das suas. Vai dizendo as suas piadas e pregando as suas partidas enquanto serve a clientela, que ri a bandeiras despregadas. Observo aquilo e pergunto-me porque não sou assim tão bem disposta. Porquê? Se há alguns (não muitos) anos, eu o era? Tinha boa disposição e humor para dar e vender, mas hoje, não. Eu quero, mas não consigo, o que me deixa ainda mais triste.
De regresso ao gabinete. Mais quatro horas de papelada para despachar. Recebo um SMS. É um amigo a convidar para um copo logo à noite. Respondo prontamente que sim, até porque, para além de gostar da sua companhia, não tenho nada mais interessante para fazer.
Lá fora chove a cântaros, tal como anunciado. Na minha cabeça, o meu vizinho, de t-shirt, encharcado, a tremer de frio. Liberto uma audível gargalhada. As pessoas em meu redor olham para mim com indignação estampada na face. Coro e afasto-me graciosamente, só para rir mais um bocadinho. Há que aproveitar estes momentos. Têm sido raros.

Findo mais um dia de trabalho, apresso-me a ir para casa. Tenho de tomar mais um banho, escolher a roupa, os acessórios, o perfume, a disposição. Isto são coisas que levam o seu tempo.
Tou despachada. Levo companhia, claro. Não posso ir sozinha, e sempre que pode, ele faz-me companhia nestas saídas. "Vamos?", pergunto. "Não sei. Vê lá. Se ainda não tiveres atrasada o suficiente, posso esperar mais um pouco!" - diz o cabrão, num tom que nada me agrada. Vamos!
Tivemos sorte. Conseguimos estacionamento mesmo em frente ao bar. Entramos. O meu amigo já lá está à nossa espera. Sentamo-nos. Ele trouxe outro amigo e diz esperar mais um. O meu coração acusa qualquer coisa. De repente e do nada, ganha vontade própria e quer saltar-me pela boca, parece querer fugir dali para fora. Engulo-o para que regresse ao seu lugar. Mesmo assim, está louco. Salta, salta, salta.

Ele também vem e... eu estou cá, e... como reagirei? Tenho medo! Estou aterrorizada, começo a aquecer. O suor escorre pelas costas. Eu sinto. Na esperança que ninguém tenha notado, fingo procurar algo na mala enquanto, muito discretamente, dou profundas inspirações, na tentativa de me acalmar. Passou. Por fim acalmei.
Ouço a porta a abrir. Alguém está para entrar. E entra. É ele! Fixo o olhar nele e nem reparo que está completamente encharcado do temporal lá fora. Pareceu uma eternidade, vê-lo entrar, sacudir as gotas do cabelo, despir o casaco, pendurá-lo e dirigir-se para a minha mesa com os olhos fixados em mim. Por outro lado, tudo me pareceu tão rápido. E foram tão rápidos os dois beijos na face que ele me deu. Sim, dois! Embora o meu desejo fosse só um, mas não na face...
Bebo um chá. Conversamos um pouco os cinco e, olho para ele. Ele olha para mim. Sinto-me constrangida, mas não consigo desviar o olhar. Eu quero, mas não consigo. Nem ele! Porque será que me olha assim? Será que sente o mesmo que eu? A dúvida fica a pairar no ar, e desespero...
O tempo passou mais rápido que o desejado, pelo que, à hora de irmos embora, não consigo esconder o meu ar de desalento.
Ele levanta-se, despede-se e sai. Observo enquanto ele se afasta, com um enorme desejo de ganhar coragem para o interpelar e pedir-lhe que não vá, e fique comigo. Mas isso não acontece e ele desaparece para além da porta de saída. Nós também nos vamos retirar. Estamos à porta do bar quando, do nada, aparece o empregado empunhando um telemóvel: "É vosso?", pergunta. "É do nosso amigo", digo eu! E sem que ninguém pudesse evitar, arranco-lhe o telemóvel das mãos e começo a correr no sentido em que ele se dirigiu, na esperanças de ainda o encontrar. Vejo-o! Chamo pelo seu nome bem alto para que não ouse não ouvir. Ele ouve e vira-se para mim com o mais lindo dos sorrisos. Acalmo, e enquanto me aproximo, estendo-lhe a mão com o telemóvel, na esperança que a recompensa fosse um ofegante e profundo beijo. Mas não! Ao invés disso, ficamos enbasbacados a olhar um para o outro durante horas. Durante esse tempo consegui contornar todos os traços da sua face, nariz, boca, com os meus olhos. É tão lindo!!!!!
De repente, sinto arrepio na espinha. Ele tocou-me no ombro, o que provocou esse efeito. Desperto e ouço um grito! Era o meu nome. Não se passaram horas, mas poucos minutos, e o meu irmão chamava o meu nome. Tinha de ir.
O meu maninho fala comigo, mas a única coisa que consigo fazer é olhar para ele com o mais estúpido dos sorrisos. Ele ri-se! Enquanto me dirigo para casa, levo no pensamento a imagem de perfeição daqueles lábios. E penso, desejo, voltar a reencontrá-lo e esperar que um dia aconteça. Que um dia aconteça aquilo que senti que também ele quer, mas que, por alguma razão não o consegue.

NOTA: Todo o conteúdo deste blog é da responsabilidade de um conjunto alargado de pessoas e respectivas atitudes, que sem muito esforço, conseguiram enlouquecer por completo o autor, provocando uma série de devaneios sem nexo, sem lógica e, definitivamente sem nenhuma razão de ser.

1 comentário:

Ana Cavaco disse...

Ihiiih, adorei.
Muito bom mesmo.